sábado, 6 de setembro de 2014

ENTRE LUNDUS E MODINHAS



Antes da gravação e venda de discos e fitas (e de extensas discografias disponibilizadas no Pirate Bay), a cultura do "ao vivo" reinou despreocupada e sozinha. Foi em volta de pianos e de clarinetes, por assobios espontâneos e pelos sons de bandinhas que tocavam nos centros urbanos recém formados que se construía e se divulgava os primórdios da Música Popular Brasileira. Sem a total consciência dos envolvidos, o começo ocorreu lá pelo século XVIII, mais de duzentos anos depois da invasão portuguesa. A demora é justificada pela intensa segregação social, e ambiente que permitia uma cultura musical basicamente folclórica, construída na tradição oral e passada de geração para geração.


Ainda sem a formação da modinha e do lundu, ouvia-se os instrumentos de sopro de rituais indígenas, a dança e a percussão africana e o canto dos colonizadores europeus, mas a falta de mistura e de vazamento para outros nichos impediam que qualquer um dos estilos fosse a música brasileira, a música do país (pois como ser música popular sem o sentimento de povo?). O som religioso nas vozes afinadas das missas católicas e as organizadas fanfarras militares também ecoavam nas ruas, mas representavam direta e quase somente a cultura da elite colonizadora.

 

Salvador e o Rio de Janeiro foram as primeiras cidades coloniais que conseguiram em sua vida urbana fundir e misturar. Sem surpresa, os primeiros indícios da modinha surgiram por lá: um gênero luso-brasileiro simples, estrófico, e acompanhado de viola, com letras românticas e tocadas por homens que falavam de amor e se dirigiam às mulheres com malícia e permissividade transgressora. Em Portugal o gênero já existia, e eram as letras e a síncope nas melodias – creditada à influência africana na cultura brasileira – que distanciavam a modinha metropolitana da feita na colônia.


 
Como se a história fosse propositalmente feita em tom romântico, é um mulato carioca chamado Domingos Caldas Barbosa quem, em 1775, leva a moda brasileira às terras lusas, subvertendo um gênero lá já enraizado com liberdade própria, sem reproduzir as normas morais da elite portuguesa. Manuscritos históricos do escritor português Ribeiro dos Santos descrevem estas cantigas como “descompostas”, capazes de transportar o ouvinte para bordéis. Ele ainda afirmou que não havia ninguém mais prejudicial que Caldas Barbosa (“trovador de Vênus e de Cupido”) para a educação particular e pública da sociedade.


O som-primeiro da MPB também teve como traço marcante seu trato do amor sensual, que gerou reações de desgosto análogas às que (ainda!) acontecem hoje: o sexo na música dita brega, por exemplo, é tratado com um pudor e desconfiança que não são utilizados para a análise de produtos culturais classificados como oriundos da erudição (baseado no forró eletrônico, o jornalista Felipe Trotta dissertou sobre o tema em “A Reinvenção Musical do Nordeste”, publicado no livro Operação Forrock).



Apesar de seu caráter notoriamente popular, as inevitáveis mudanças no gênero ocorreram e as cantigas chegaram a se tornar música de salão (voltando à condição inicial apenas com a chegada das serenatas feitas pelos violeiros nas ruas do século XIX), foram confundidas com óperas italianas (cantadas por cantores líricos em teatros e tudo mais) e chegaram (como não?), aos herdeiros da classe média urbana, escritores e bon vivants que se dedicavam às tardes de boemia e poesia (desse grupo faziam parte Machado de Assis, José de Alencar e Gonçalves Dias).



Estes últimos são considerados responsáveis pelo afastamento das tentativas de “eruditização” da modinha, já que estavam ligados a instrumentistas populares, ao mesmo tempo em que influenciaram o requinte dos letristas, dando às composições ares de poesia romântica. O pesquisador em história musical José Tinhorão afirma em seu livro Pequena História da Música Popular Brasileira que a influência desse preciosismo “mais tarde seria responsável pela tradição de pernosticismo de várias gerações de letristas semianalfabetos da música popular brasileira”.



A denominação “modinha” tem explicações variadas. O termo “moda” era usado para quaisquer canções que surgiam nos centros urbanos, o diminutivo foi designado para se referir às cantigas da camada mais pobre da população, assim como aos sons trazidos pela colônia. Mário de Andrade, mais otimista, afirmou certa vez que “chamaram-lhes modinhas por serem delicadas” (delas gostava tanto que em outra frase as define como “um suspiro de amor”). A partir dos anos 50 a palavra modinha passa a ser usada para designar canções sentimentalistas, que possuem algo de nostálgico, antiquado e bonito (“Modinha” de Jobim e Vinícus, por exemplo, gravada em 1958). O significo sentimentalista perdura na palavra até hoje.





E com a modinha veio o lundu e a primeira música em disco

Domingos Caldas Barbosa tem seu nome documentalmente ligado ao aparecimento da modinha em Portugal e é um dos tocadores mais citados do gênero. Em seus poemas o termo “lundum” é citado com frequência, já mostrando o flerte e a grande ligação que os tocadores da época tinham com este outro gênero contemporâneo da modinha. É difícil dizer seu início ao certo, pois não faltam grafias da palavra (landu, landum, londum) e explicações históricas e semânticas sobre cada uma delas.



O que se sabe é que antes de ser gênero musical, o lundu era dança (calundu) praticada majoritariamente por negros e mestiços, acompanhada pela percussão dos escravos e com nuances da coreografia semelhantes ao bolero e ao fandango. Apesar disso, de origem brasileira, o lundu-canção chega depois e a princípio soa como uma modinha com algumas características particulares. Seu caráter cômico marcou como um dos traços mais notáveis, fazendo um contraponto com o sofrimento amoroso das modinhas e assim se distanciando.



Para Mário de Andrade, o lundu foi o primeiro a conseguir vencer a impermeabilidade das classes no Brasil, já que foi o primeiro gênero negro considerado música nacional. Foi o lundu também a primeira amostra de MPB a ser gravado no Brasil nos recém-chegados discos de 78 rotações. Em 1902, “Isto é Bom” de composição de Xisto Bahia, cantada e lançada por Bahiano, é a primeira música a ser gravada no país. No canto um sotaque perdido e em suas palavras uma pequena amostra do humor dos primeiros anos do século XX:

 

Já já você quer morrer / se morrer, morramos juntos /

Eu quero ver como cabe / numa cova dois defuntos,

(...)

Os padres gostam de moças / e os doutores também

Eu como rapaz solteiro / gosto mais do que ninguém.

Texto de: Laís Araújo 
  FONTE:http://www.revistacontinente.com.br/







Nenhum comentário:

Postar um comentário