
Ainda sem a formação da modinha e do lundu,
ouvia-se os instrumentos de sopro de rituais indígenas, a dança e a percussão
africana e o canto dos colonizadores europeus, mas a falta de mistura e de
vazamento para outros nichos impediam que qualquer um dos estilos fosse a
música brasileira, a música do país (pois como ser música popular sem o
sentimento de povo?). O som religioso nas vozes afinadas das missas católicas e
as organizadas fanfarras militares também ecoavam nas ruas, mas representavam
direta e quase somente a cultura da elite colonizadora.
Salvador e o Rio de Janeiro foram as primeiras
cidades coloniais que conseguiram em sua vida urbana fundir e misturar. Sem
surpresa, os primeiros indícios da modinha surgiram por lá: um gênero
luso-brasileiro simples, estrófico, e acompanhado de viola, com letras
românticas e tocadas por homens que falavam de amor e se dirigiam às mulheres
com malícia e permissividade transgressora. Em Portugal o gênero já existia, e
eram as letras e a síncope nas melodias – creditada à influência africana na
cultura brasileira – que distanciavam a modinha metropolitana da feita na
colônia.
Como se a história fosse propositalmente feita em
tom romântico, é um mulato carioca chamado Domingos Caldas Barbosa quem, em 1775,
leva a moda brasileira às terras lusas, subvertendo um gênero lá já enraizado
com liberdade própria, sem reproduzir as normas morais da elite portuguesa.
Manuscritos históricos do escritor português Ribeiro dos Santos descrevem estas
cantigas como “descompostas”, capazes de transportar o ouvinte para bordéis.
Ele ainda afirmou que não havia ninguém mais prejudicial que Caldas Barbosa
(“trovador de Vênus e de Cupido”) para a educação particular e pública da
sociedade.
O som-primeiro da MPB também teve como traço
marcante seu trato do amor sensual, que gerou reações de desgosto análogas às
que (ainda!) acontecem hoje: o sexo na música dita brega, por exemplo, é
tratado com um pudor e desconfiança que não são utilizados para a análise de
produtos culturais classificados como oriundos da erudição (baseado no forró
eletrônico, o jornalista Felipe Trotta dissertou sobre o tema em “A Reinvenção
Musical do Nordeste”, publicado no livro Operação Forrock).
Apesar de seu caráter notoriamente popular, as inevitáveis
mudanças no gênero ocorreram e as cantigas chegaram a se tornar música de salão
(voltando à condição inicial apenas com a chegada das serenatas feitas pelos
violeiros nas ruas do século XIX), foram confundidas com óperas italianas
(cantadas por cantores líricos em teatros e tudo mais) e chegaram (como não?),
aos herdeiros da classe média urbana, escritores e bon vivants que se dedicavam
às tardes de boemia e poesia (desse grupo faziam parte Machado de Assis, José
de Alencar e Gonçalves Dias).
Estes últimos são considerados responsáveis pelo
afastamento das tentativas de “eruditização” da modinha, já que estavam ligados
a instrumentistas populares, ao mesmo tempo em que influenciaram o requinte dos
letristas, dando às composições ares de poesia romântica. O pesquisador em
história musical José Tinhorão afirma em seu livro Pequena História da Música
Popular Brasileira que a influência desse preciosismo “mais tarde seria
responsável pela tradição de pernosticismo de várias gerações de letristas semianalfabetos
da música popular brasileira”.
A denominação “modinha” tem explicações variadas. O
termo “moda” era usado para quaisquer canções que surgiam nos centros urbanos,
o diminutivo foi designado para se referir às cantigas da camada mais pobre da
população, assim como aos sons trazidos pela colônia. Mário de Andrade, mais
otimista, afirmou certa vez que “chamaram-lhes modinhas por serem delicadas”
(delas gostava tanto que em outra frase as define como “um suspiro de amor”). A
partir dos anos 50 a palavra modinha passa a ser usada para designar canções
sentimentalistas, que possuem algo de nostálgico, antiquado e bonito (“Modinha”
de Jobim e Vinícus, por exemplo, gravada em 1958). O significo sentimentalista
perdura na palavra até hoje.
E com a modinha veio o lundu e a primeira música em
disco
Domingos Caldas Barbosa tem seu nome
documentalmente ligado ao aparecimento da modinha em Portugal e é um dos
tocadores mais citados do gênero. Em seus poemas o termo “lundum” é citado com
frequência, já mostrando o flerte e a grande ligação que os tocadores da época
tinham com este outro gênero contemporâneo da modinha. É difícil dizer seu
início ao certo, pois não faltam grafias da palavra (landu, landum, londum) e
explicações históricas e semânticas sobre cada uma delas.
O que se sabe é que antes de ser gênero musical, o
lundu era dança (calundu) praticada majoritariamente por negros e mestiços,
acompanhada pela percussão dos escravos e com nuances da coreografia
semelhantes ao bolero e ao fandango. Apesar disso, de origem brasileira, o
lundu-canção chega depois e a princípio soa como uma modinha com algumas
características particulares. Seu caráter cômico marcou como um dos traços mais
notáveis, fazendo um contraponto com o sofrimento amoroso das modinhas e assim
se distanciando.
Para Mário de Andrade, o lundu foi o primeiro a
conseguir vencer a impermeabilidade das classes no Brasil, já que foi o
primeiro gênero negro considerado música nacional. Foi o lundu também a
primeira amostra de MPB a ser gravado no Brasil nos recém-chegados discos de 78
rotações. Em 1902, “Isto é Bom” de composição de Xisto Bahia, cantada e lançada
por Bahiano, é a primeira música a ser gravada no país. No canto um sotaque
perdido e em suas palavras uma pequena amostra do humor dos primeiros anos do
século XX:
Já já você
quer morrer / se morrer, morramos juntos /
Eu quero ver
como cabe / numa cova dois defuntos,
(...)
Os padres
gostam de moças / e os doutores também
Eu como rapaz
solteiro / gosto mais do que ninguém.
Texto de: Laís Araújo
FONTE:http://www.revistacontinente.com.br/
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